Wednesday, November 21, 2007

Para onde navegareis Brasil?

Foto: Navio-Escola "Brasil" (U-27).


































REPERCUTINDO

Abaixo uma segunda carta, cuja autoria também é atribuída ao 1° Ten da Marinha do Brasil, Marcio de Abreu Praça Cardoso, desta feita tecendo comentários sobre a repercussão causada pela carta anterior (click aqui para ler), como também esclarecendo dúvidas e corrigindo interpretações errôneas por parte de alguns dos leitores daquela.
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COMENTÁRIOS SOBRE MINHA CARTA

Prezados senhores,

Apenas uma semana após a divulgação da minha carta, já me sinto obrigado a fazer um comentário geral, vista sua repercussão. Sou parabenizado efusivamente mas também gravemente rechaçado por militares das três Forças, sejam Generais ou Soldados Fuzileiros. Também sou procurado por jornalistas que, somados os meios envolvidos, divulgariam o conteúdo da minha carta em mais de 40 jornais ou periódicos, de maior ou menor expressão. Muitas pessoas me escrevem querendo saber se sou lenda urbana, colocando simplesmente em seu e-mail: “só queria saber se você era real”. Sou taxado de aproveitador, herói nacional, embusteiro, o João Cândido da era digital. Alguns me mandam me calar, outros escrever um livro e me candidatar a deputado federal.

Resumindo, a tarefa de responder a toda essa gente começa a se tornar inviável, seja para agradecer pelas congratulações ou refutar os argumentos contrários. Por isso escrevi este comentário, que não é uma nova carta, mas, basicamente, uma explicação da primeira, de seus reais motivos, suas origens e de pontos obscuros do texto. Peço a todos que a receberem que repassem aos seus contatos para quem também enviaram a carta original. Este segundo texto será enviado a todos que me mandaram uma resposta por e-mail, tenha sido ela a favor ou contra.

Muitas dúvidas surgiram de interpretações erradas do que escrevi, talvez fruto de uma leitura rápida, superficial ou preconceituosa. Por isso, neste comentário, vou usar somente texto puro; abolirei metáforas, sarcasmos ou qualquer outra figura de linguagem que possa suscitar novas dúvidas. Se esquecer de explicar algum ponto da carta, me perdoem, mas faço votos de que, após a leitura deste texto, algumas passagens se tornem mais claras.

O primeiro comentário que faço é sobre sua divulgação inicial. Sem contar minha Turma de EN, que possui cerca de 180 oficiais, com os quais me correspondo freqüentemente pelo grupo de e-mail, esta minha carta foi enviada para cerca de 50 pessoas, incluindo aí praças e oficiais que me conhecem ou trabalharam comigo de forma direta. Também mandei nominalmente uma cópia em papel para alguns oficiais, em geral meus ex-comandantes, e também para alguns Almirantes que julgo serem as autoridades competentes para tomar as decisões que sugiro em meu texto. Mandei uma cópia em papel por achar mais polido e conveniente.

É claro que imaginava que ocorreria uma divulgação ampla, mas cria que seria mais lenta e que ficasse restrita à MB. Por isso, acho que mesmo aqueles que discordam de mim deveriam, com um mínimo de bom-senso, tentar descobrir porque – se escrevi somente despautérios e usei argumentos descabidos – minha carta foi acolhida com tanto entusiasmo pela tropa; isso denota, no mínimo, que parte das suas angústias encontra-se refletida no texto. Não acho que sua distribuição em massa tenha sido feita pelos que a repugnaram, mas pelos que acreditam conter ela um pouco de voz que clame pelo que considero hoje uma multidão de amordaçados.

Se nossas autoridades não concordam com o que escrevi, não há problema nisso, nós vivemos em um Estado Democrático e ninguém é obrigado a pensar de uma forma ou de outra. Mas isso nos leva a um dilema: como lidar com a grande parte das praças e da oficialidade que pensa como eu, em menor ou em maior escala? Se eu sou um problema que foi resolvido com meu desligamento da Força, o que fazer com os demais problemas que povoam nossas Praças d’Armas e cobertas dos navios?

Em segundo lugar, embora seja dito explicitamente no texto, minha carta não foi feita para manchar a imagem da Marinha, mas para melhorá-la. “Esta carta foi escrita como uma última tentativa de mudar o que não consegui em quase uma década”. Repito, considero as FFAA extremamente importantes, apenas fico triste porque não vi profissionalismo, lucidez e seriedade no trato com a coisa pública (nisto não falo de corrupção, mas de eficiência) e com segurança nacional. Foi isso que me motivou a escrever este texto. Por isso, não me escrevam me acusando de não amar o País e coisas do tipo, pois, se tudo o que eu passei na Marinha tivesse um propósito justo e necessário, teria suportado as intempéries e continuado na Força. “O homem pode suportar muitos como, desde que haja um porquê” (Nietzsche).

Perguntam-me se eu odeio a Marinha e se não passei nada de bom nela. Eu gosto da Marinha, sim, e ter escrito a carta, considerando que dê frutos positivos como a melhoria da qualidade de vida e motivação do pessoal, foi a maior contribuição que pude dar. O que adianta passar a vida inteira empurrando sujeira para debaixo do tapete? Mais cedo ou mais tarde alguém teria que tocar no tema. Passei muitos momentos bons na Marinha na companhia de meus amigos de Praça d’Armas e subordinados, mas eu escrevi essa carta para dizer os motivos que me levaram a sair, e não os que me levaram a ficar.

De modo algum sou contra as tradições sadias, que, como cito em meu texto, nos unem em laços comuns. Todas as marinhas do mundo possuem tradições, que estão presentes nos uniformes, no linguajar e no modo de enxergar o mundo. Porém, existem tradições negativas sim, que devem ser abolidas, ou, em muitos casos, apenas atenuadas. Outras, como a que cito explicitamente, que são as honras de portaló, deveriam ser deixadas para festividades e cerimônias. Caso contrário, continuaremos sacrificando um oficial em troca de um simples capricho, na minha opinião.

Por mais incrível que pareça, alguns também me escrevem dizendo que não entenderam qual é a crítica da minha carta. Basta olhar para os jornais: o êxodo de oficiais está aumentando mais e mais (isso é um fato), e a principal causa não é a financeira, acreditem. O principal problema é qualidade de vida. Está satisfeito, hoje, na Marinha, quem é apaixonado pelo que faz. Isso não é demérito, ao contrário, acredito que todos deveriam ser apaixonados pelo que fazem. Mas é a paixão deles que faz com que superem os graves entraves administrativos, as idiossincrasias, as ordens sem sentido e continuem satisfeitos, porque eles mesmos não se vêem fazendo outra coisa. Acontece que paixão não pode ser medida em um concurso de admissão, e não creio que esses amantes fervorosos respondam por mais do que 10% do nosso contingente. Os outros 90% podem gostar da Marinha, tentar dar o melhor de si no local onde servem, mas não são incansáveis; eles esperam que haja uma contra-prestação por parte dos seus superiores, e creio que estamos entrando no cerne do que seria a verdadeira liderança. Já ouvi de muitos praças que a primeira coisa a fazer caso entrássemos em guerra seria matar o comandante tal, ou o tal, pelo nosso próprio bem. Essa é a preocupante opinião da tropa, e só porque não chega aos ouvidos das nossas autoridades não significa que esteja tudo bem. Aos que discordam de mim, antes de esbravejarem e me xingarem, tentem, por favor, saber de seus subordinados se concordam ou não com o que disse. O difícil pode ser extrair sinceridade...

Não invoco sobre mim o título de líder; não estou iniciando nenhum movimento; não me considero um expoente da minha geração e nem possuo uma inteligência privilegiada. O que possuo, sem falsa modéstia, é bom-senso, e foi norteado basicamente por ele que ressaltei os pontos que considero deficitários no nosso dia-a-dia.

Muitos me acusam de ser generalista; chamo a todos de alcoólatras, ladrões e picaretas. Claro que isso não é verdade, e eu nunca escrevi isso. Se alguém diz “o governo Lula é corrupto”, quem é corrupto? Todos? O Presidente? Com que provas? Se alguém diz “a polícia do Rio é corrupta”, quem é corrupto? Os soldados? Os oficiais? Todos? Então estamos entrando em uma nova era de crimes de opinião. Se eu estivesse ofendendo toda a Marinha, porque minha caixa postal teria sido inundada de e-mails me dando parabéns e se solidarizando comigo? Tudo que cito, e olha que não foi tudo o que vi e vivi, se deu ao longo de uma carreira que foi curta, mas bem intensa, caso se possuam olhos críticos e capazes de uma análise mais profunda. Impossível que todos aqueles fatos se refiram a um só lugar ou a uma só pessoa, senão ela seria o anti-cristo. Citei histórias que vivi, ou que vi colegas passarem, ou mesmo práticas que são consagradas em nosso meio. Ou alguém vai ter a coragem de me dizer que não conhece a estória do Caldeirão Naval? Assim sendo, não se sintam ofendidos, porque não disse que todos são alcoólatras e pais ausentes (sei que essa foi minha afirmação mais polêmica). Eu não sou, a maioria dos que concordam comigo não são, grande parte dos que discordam também. Mas devem existir muitos para consumir os 10.000 litros de bebida comprados pela Marinha recentemente, segundo o repórter da BandNews Luiz Megale, compra esta que teria sido criticada pelo Vice-Almirante Armando Ferreira Vidigal. Vide clicando aqui.

Eu estou mentindo? Existe uma conspiração? O que quis dizer foi que realmente a cultura do álcool é muito forte na MB, como cito em vários pontos da carta. Durante minha curta carreira, por muitas vezes fui criticado por não beber, sendo impedido de ir embora depois do expediente para “pelo menos fazer companhia” aos oficiais que se confraternizavam em seu happy-hour. Já fui obrigado a beber cachaça para agradar a um superior; fui obrigado a render serviço fora da escala para permitir que o oficial rendido pudesse tomar cerveja, já que eu não era um bom amigo de copo; dentre os ensinamentos recebidos na EN, estava o que sugeria que “o oficial sempre deve estar com um copo na mão”; dentre brincadeiras de Praça d’Armas vi desafios de beber 450ml de whisky sem gelo. Se eu usei a palavra “alcoólatra” é porque não sabia outra.

Novamente, quando digo pais ausentes não digo que todos sejam, nem que seja de modo voluntário, mas muitos militares não conseguem acompanhar a família do modo que querem, por imposição das funções e pela natureza do trabalho, em certos casos desnecessariamente extenuante. Outros, simplesmente, não gostam de ir pra casa após o trabalho, e obrigam seus subordinados a compartilharem sua falta de zelo pela família. Resumindo, se usei de generalizações, foi em favor da argumentação mais simples, senão encharcaria o texto com ressalvas. Ninguém precisa se encaixar em todas as situações, caso não queira. Contudo, se mesmo assim alguns dos excelentes oficiais que conheço, dentre eles amigos pessoais que mantêm uma postura corretíssima, ficaram de algum modo ofendidos, aqui peço minhas desculpas publicamente e faço minha retratação aos demais oficiais e almirantes. Ao restante, mantenho firmes minhas palavras.

Me criticaram até porque decretei o fim da Marinha!!! “Entendam: esta Força, como hoje conhecemos, não vai subsistir, nem de um modo, nem de outro”. Estou escrevendo esses comentários porque parece que as pessoas leram minha carta sem ler. O que disse foi que a cultura reinante na MB, incluindo as atitudes criticadas por mim, não vai subsistir quando minha geração chegar ao comando. A Marinha vai continuar a existir sempre, isto é uma imposição constitucional.

Não centrei minha exposição no sucateamento dos meios, nem em outros fatores materiais porque muitos já falaram sobre isso e sei que essa não é a questão central. Porém, isso é uma boa notícia: o aumento de satisfação do pessoal na Marinha do Brasil não depende de dinheiro! Depende de boa-vontade e de bom-senso; de resto, só faltam algumas assinaturas.

Me chamam de oportunista, traidor. Dizem que não tive a coragem de divulgar a carta quando ainda estava na ativa. Primeiramente, eu não sou burro, e já cansei de dar murro em ponta de faca há muito tempo. O que pude reclamar e dizer dentro da Marinha eu o fiz a seu tempo, e, invariavelmente, recebia um sonoro NÃO como resposta. Agora eu nem imagino qual o estrago que ocorreria se eu estivesse dentro da Força e enviasse um texto como esse. Me desculpem, mas as FFAA nunca foram um ambiente propício ao debate, e não me digam que isso é necessário à hierarquia e disciplina, pois, na verdade, a dissonância entre a visão de mundo de nossos chefes militares e da nossa tropa está levando a caserna a uma crise de liderança silenciosa; todos estão suportando tudo, esperando ansiosamente o momento em que vão se desvencilhar: os mais antigos esperando cruzarem seus 30 anos, e os mais modernos fugindo através de concursos públicos, ou tentando fazer uma faculdade para cambar para a iniciativa privada. Tudo isso é real.

Outros reclamam que minha carta foi passional, que soou um pouco amarga. Tem razão. Se esta carta fosse escrita alguns meses depois de sair da Força, ela seria muito mais didática, analítica; enfim, iria parecer uma excelente tese de um intelectual que explica todos os problemas do mundo sem nunca tê-los vivido. Ao contrário, já com a idéia de fazer uma carta na cabeça, comecei a escrevê-la no exato dia em que fui proibido por um oficial superior (eu, um Primeiro-Tenente!) de fazer educação física, porque minha camisa era de manga, ao invés de ser uma camiseta regata. Na minha humilde opinião, deve haver algo mais importante com o que se preocupar na Marinha do Brasil. A carga de sentimentos com a qual impregnei minhas linhas serviu para que muitas pessoas se identificassem comigo. Inúmeras foram as pessoas que me escreveram dizendo que, ao lerem o texto, se sentiam exatamente como eu descrevia. Acho que, por isso também, acabei escrevendo pouca coisa, ou quase nada, do lado bom da MB.

Não quero que nossos chefes militares levem canhões à Brasília e tomem de assalto o Congresso para exigir verbas. Apenas não gostaria que o ônus do contingenciamento de recursos seja repassado à tropa, exigindo que nossas guarnições pintem sem tinta e que sejam responsabilizados pelo péssimo acabamento resultante, ou que tenham que dar brilho em um piso sem dispor de cera, como vi algumas vezes, condicionando o licenciamento ao seu surgimento milagroso apenas com a aplicação de um pano úmido.

Afirmam que minhas críticas são vagas e genéricas, outros dizem que fiz uma carta-denúncia. Ora, isto é um paradoxo. Se sou genérico, é exatamente porque não adotei uma postura denuncista: me abstive de anexar provas e de citar nomes, lugares e datas. Outros me acusam de prevaricação. Pode ser. Por duas vezes estive a ponto de prestar queixa junto ao Ministério Público, por Crime contra a Administração Pública e Crime Ambiental (derramamento sistemático de óleo em área de proteção ambiental – falta de profissionalismo). Se eu quisesse poderia tê-lo feito em casa, pela Internet, sem apresentar provas, apenas indícios, e nem precisaria me identificar. Confiram clicando aqui. Não o fiz exatamente porque um simples escândalo levaria ao desencadeamento de vários outros, maculando, aí sim, efetivamente a imagem da instituição, o que não desejava. Como falei em minha carta, alguns navios (evito assim a tão criticada “generalização”) não podem manter sua capacidade operativa e realizar sua manutenção sem recorrer ao malabarismo de notas fiscais, mudando a natureza da despesa efetuada, ou realizando outros artifícios para que não se ultrapasse o limite de licitação. Tudo isso, embora realizado para o aprestamento do navio, é feito com nossas assinaturas, e mesmo que não se considere imoral, efetivamente é ilegal. Por isso disse em minha carta que não se pode dizer a um magistrado que “o fez em prol do serviço”. Reconheço que tal manobra não se destina a auferir vantagens pessoais, mas sim de manter o meio operando. Nisto louvo a MB, realmente não testemunhei casos de corrupção visando enriquecimento ilícito, embora devam existir, como em qualquer outro lugar. Mesmo assim, é óbvio que a Marinha não deveria depender de meios ilícitos para se manter, nem obrigar seus militares a realizar tais atos. É sobre isso que falo.

Sobre a declaração “merecemos descanso depois desta atividade tão ingrata, que é se fazer ao mar”, relembro o sentido de ingrato trazido pelo Michaelis: “1.Que não mostra reconhecimento. 2. Que se esqueceu dos benefícios que recebeu. 3. Que não corresponde aos benefícios recebidos ou à afeição que se lhe dedica”. Realmente é uma atividade ingrata. Embora, particularmente, EU não goste, até mesmo os que sentem satisfação em se fazer ao mar estão longe de receber algum tipo de retorno que não seja a sua própria satisfação. Considero que todo militar embarcado deveria receber compensação orgânica, mas isto não está dentro do nosso poder de decisão. Mas o que está, não se faz: é ridículo dar ao militar um dia de folga para cada 30 que se afasta de casa e exigir que fique a bordo baldeando e pintando o navio sem antes poder ver a família. Qualquer tropa compreende quando é necessário realizar um esforço, e o bom militar o faz sem reclamar. Mas a extenuação da tropa, quando não há um motivo compreensível, leva a crises de liderança.

Teci esses comentários para dar um pano de fundo a quem recebeu minha carta na Internet de modo seco, sem saber de onde vinha e me desconhecendo como pessoa. Saibam que a fiz com a melhor das intenções, pois quero que a Marinha, assim como o Exército e a FAB, se tornem instituições mais fortes e sejam dignas de respeito, não pelo que aparentam ser, mas pelo que são. Existem coisas erradas a serem consertadas; um bate-papo franco com a tropa vai ajudar em muito; nessa negociação, OS DOIS LADOS vão ter que ceder.

Também sei que encontrarei dificuldades na minha próxima carreira assim como em qualquer outra instituição; não desisti do militarismo porque encontrei problemas, mas porque vislumbrava soluções óbvias que não eram adotadas por motivos que não considerava justificáveis. E relembro que não estou falando de problemas materiais. Os que da minha carta só extraíram indignação perderam uma boa oportunidade de entender como pensa parte de nosso contingente, achem isso certo ou errado.

Infelizmente, não estou mais conseguindo responder a todos os e-mails, como planejei desde o início, senão precisaria contratar auxiliares. Contudo, mesmo que demore um pouco, tentarei, ao seu tempo, agradecer a cada um pela resposta ou tentar contra-argumentar as questões levantadas pelos que de mim discordam.

MARCIO DE ABREU PRAÇA CARDOSO
Primeiro-Tenente (RM2)
Analista Administrativo TRE-RJ



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