Sunday, December 16, 2007

O esfacelamento do Itamaraty em "marcha batida".

Foto: José Maria da Silva Paranhos o "Barão do Rio Branco"
(Patrono da Diplomacia Brasileira).











































Carta aberta ao chanceler Celso Amorim

Como um grande número de colegas, acompanho com desaprovação, mas em silêncio, a maneira como você e Samuel vêm conduzindo o Itamaraty.

Hierarquizados como somos, ainda acreditamos no velho bordão de que quem fala pela Casa é o seu chefe. Assim, ao nos darmos conta, logo no início do governo Lula, de quem iria dirigir a Casa nos próximos anos, muitos, como eu, preferimos aposentar-nos a seguir na ativa sob uma direção de que fatalmente discordaríamos. A propósito, nunca, em momento algum do Itamaraty, houve tantos embaixadores aposentados voluntária e precocemente.

Certo, você já havia dirigido a Casa em outra ocasião, mas as circunstâncias eram totalmente diferentes, pois não só sua chefia era mais aparência que realidade (o que muitos dizem ser novamente o caso), mas, sobretudo o presidente era outro.

Não é o caso de concordar ou não com o governo. Afinal, todos servimos ao país no tempo dos governos militares, com os quais a grande maioria de nós não concordava. Mas servíamos ao Estado, nosso legítimo patrão, e não a partidos.

Com o governo do PT e conhecendo a sua "flexibilidade", mais o viés ideológico do Samuel, vários, como eu, previmos o que estaria por acontecer e, com o espírito de disciplina da carreira, preferimos dela nos afastar, por estimarmos que viríamos a discordar frontalmente da maneira pela qual a Casa seria conduzida. Assim, eu, por exemplo, pedi minha aposentadoria mais de cinco anos antes da data compulsória.

Evidentemente não foi uma decisão fácil. Você sabe tão bem quanto eu o quanto significa para nós essa carreira, como nos dedicamos integralmente a ela. Mas absolutamente não me arrependo de havê-la deixado tão cedo, pois com meu temperamento seria muito difícil engolir calado a série de estrepolias administrativas que vêm sendo praticadas. E que já se iniciavam com a falta de legitimidade do secretário-geral, que não preenchia os requisitos legais para ocupar o cargo (lembro que para que o pudesse ocupar foi necessária a anulação, por meio de um artigo espúrio de medida provisória que nada tinha a ver com o Itamaraty, da exigência de haver exercido chefia de missão diplomática).

Enfim, não vou entrar em pormenores dos vários atos que estupraram as tradições da Casa, pois você certamente os conhece muito melhor do que eu.

Quero ater-me a um episódio recentíssimo, o do falecimento do ex secretário-geral e chanceler, e sobretudo grande embaixador, Mario Gibson Barboza. Sobre o qual você só veio a manifestar-se na undécima hora, ao aderir, na véspera, à homenagem que vários amigos, eu dentre eles, lhe prestamos com uma missa na Candelária. E que, pelas melhores tradições da Casa, deveria ter sido iniciativa sua.

Caso houvesse da sua parte ou da do Samuel alguma restrição pelo fato de Gibson ter sido o ministro de Estado de um duríssimo governo militar, lembro a vocês que a personalidade e a autoridade moral do falecido embaixador foram diretamente responsáveis pela manutenção da dignidade do Itamaraty naquele terrível período. Devemos a Gibson, como a alguns dos outros colegas que bem dirigiram a Casa após 1964, o fato de o Itamaraty haver sido preservado tanto quanto possível da violência do regime.

Creio que você - que sempre considerei dos mais inteligentes dentre os colegas - acabou tendo o bom senso de dar um freio na iconoclastia infantil que fazia com que o Itamaraty fingisse desconhecer o desaparecimento de um dos seus melhores nomes, e viesse, finalmente, a evitar uma grosseria inexplicável e a juntar-se ao preito que lhe rendíamos os colegas.

Pois, alentado por essa demonstração de juízo, tomo a liberdade de sugerir que use essa inteligência para analisar com equilíbrio os rumos que sua gestão está dando à Casa. Para ver que o PT passará (e breve, espero), assim como passou o regime militar, mas que o Itamaraty deve permanecer. Os José Dirceus, os Marco Aurélio Garcias e outros sicários da vida são, felizmente, transitórios. O Itamaraty era, pensávamos, permanente, com suas tradições, suas invejáveis e invejadas normas administrativas.

Que você, como parece ter feito no caso do embaixador Gibson, use de sua inteligência para deter o processo de aviltamento das tradições da carreira.

O achincalhamento a que a atual gestão submeteu a organização e os bons costumes do Ministério vai demorar décadas para ser remediado. Mas, se você utilizar sua inteligência para deter de imediato o processo e começar, na medida do possível (sei que no quadro atual não deve ser tarefa fácil) a revertê-lo, talvez dentro de uns 10 a 20 anos possamos pelo menos voltar a donde estávamos no final de 2002. E daí evoluir.

Atenciosamente (embora seja norma da Casa, não dá para usar "respeitosamente" com o ministro de Estado que está, até o momento, presidindo ao seu desmoronamento ético e profissional),

Embaixador Marcio de Oliveira Dias.


Publicado no "Jornal do Brasil".
Domingo, 16 de dezembro de 2007.



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