A hora e a vez dos ideólogos
por Demétrio Magnoli
O Conselho Sul-Americano de Defesa pode aspirar a um lugar de honra nos manuais de relações internacionais, como caso exemplar para estudo de uma política externa emparedada entre o imperativo do interesse nacional e os delírios ideológicos de uma esquerda que não aprende nada. Numa declaração contaminada pelo cinismo, Lula registrou que, "dos 12 países, apenas a Colômbia colocou objeção". Não seria porque, em seu esforço para derrotar as Farc, o Estado colombiano conta com o apoio dos EUA, mas enfrenta a hostilidade explícita da Venezuela e do Equador?
O interesse nacional brasileiro consiste em promover a estabilidade no entorno sul-americano. A Organização dos Estados Americanos (OEA), atravessada pela disparidade de poder entre os EUA e os demais Estados, não deveria ser um obstáculo à constituição de um órgão de segurança regional na América do Sul. Mas um órgão assim só pode existir com base no respeito à soberania dos Estados democráticos da região. Como pretender que a Colômbia se incorpore a um Conselho de Defesa incapaz de pronunciar uma condenação incondicional das Farc?
Politicamente, as Farc morreram quando, numa seqüência de ações terroristas, destruíram o processo de paz impulsionado pelo ex-presidente Andrés Pastrana entre 1998 e 2002. A eleição de Álvaro Uribe, sobre a plataforma de derrotar militarmente a guerrilha, representou uma decisão nacional. O governo Uribe prometeu desmantelar os grupos paramilitares de direita e está cumprindo o compromisso. Os golpes assestados pelo Exército eliminaram a capacidade de combate da guerrilha e a promessa de liberdade para os guerrilheiros que renunciarem às armas provoca fraturas generalizadas entre os insurgentes. As Farc só podem ser salvas pela interferência externa.
O presidente venezuelano, Hugo Chávez, crismou as Farc como um "movimento bolivariano" e se entregou a uma operação de socorro que se utiliza dos reféns para chantagear a Colômbia. A meta do caudilho é intercambiar a liberdade dos reféns pelo reconhecimento das Farc como parte beligerante. Nessa hipótese, o grupo conservaria suas armas e sua liberdade de ação enquanto os colombianos, contra a vontade que exprimiram em duas eleições sucessivas, seriam submetidos novamente a supostas negociações de paz. O entusiasmo chavista pelo Conselho de Defesa só pode ser compreendido à luz do que se passa na selva colombiana.
"O plano de Bolívar, quando regressou do Panamá, era formar uma aliança não só econômica e política, mas militar também, para nos defender e para assegurar nossa independência do imperialismo, do neoimperialismo e das guerras preventivas". Na visão de Chávez, o Conselho de Defesa é o embrião de uma aliança estratégica e de um exército regional destinados a prover segurança contra os EUA. Essa concepção se inspira nas teses do sociólogo alemão Heinz Dieterich, confidente do presidente da Venezuela até o fracassado referendo constitucional do ano passado, que imaginou a construção de um "bloco militar de poder latino-americano" sob a liderança do próprio Chávez.
Na forma sem conteúdo aventada pelo Brasil, o Conselho de Defesa não tem cérebro nem músculos - será, unicamente, um foro consultivo de debates, algo como uma antecâmara da OEA. Chávez aceita começar com tão pouco, pois sua prioridade tática é tecer uma articulação regional que isole a Colômbia, propiciando caminhos para evitar a iminente derrota das Farc.
A voz do venezuelano já se converteu numa ordem de comando para os partidos da esquerda stalinista latino-americana. Na declaração da reunião do Foro de São Paulo, encerrada no domingo em Montevidéu, está escrito: "Introduziu-se na região o conceito de guerra preventiva e aumentou-se a militarização em uma situação inédita comandada pelos EUA, que utiliza o governo da Colômbia como ponte". O documento, plenamente alinhado à operação de salvamento chavista, recomenda "aumentar os esforços para conseguir uma saída negociada para o conflito armado". No fim do encontro, o presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, expressou seu profundo pesar pela morte de Manuel Marulanda, o Tirofijo, chefão das Farc.
Desde Rio Branco a política externa brasileira adquiriu um perfil de política de Estado, elevando-se quase sempre acima do jogo político doméstico. No governo Lula, contudo, a pressão crescente dos ideólogos ameaça a paliçada que protege o interesse nacional. Em razão dos laços estreitos que ligam o PT ao castrismo e da emergência do chavismo, a ofensiva ideológica tem intensidade singular no domínio crucial da política para a América do Sul. O espectro da falência das Farc destruiu um equilíbrio precário no núcleo decisório da política externa brasileira.
Quando Chávez mediava a libertação dos reféns, o assessor presidencial Marco Aurélio Garcia declarou que o Brasil se mantém "neutro" diante do conflito colombiano. Logo depois, na hora do ataque à base do chefe guerrilheiro Raúl Reyes, Garcia tentou alinhar o Brasil à Venezuela e forçar uma condenação em bloco da Colômbia, mas foi afastado de cena pelo Planalto, que transferiu o comando diplomático para o Itamaraty. A tensão filtra-se no governo e no aparelho petista. O ministro do Exterior, Celso Amorim, rebelou-se contra a idéia de conferir às Farc um estatuto político, enquanto o senador Aloizio Mercadante ergueu a voz para sugerir uma condenação incondicional à guerrilha degenerada.
Agora os ideólogos voltam à carga. Diante das informações encontradas no computador de Reyes que atestam o apoio político e material da Venezuela às Farc, o Brasil conserva um silêncio oficial ignóbil. Simultaneamente, o PT eleva o tom da campanha de propaganda contra a Colômbia e o Conselho de Defesa vai sendo preenchido com os conteúdos que interessam a Caracas. Pagaremos caro pelo erro de brincar com os princípios permanentes de nossa política externa.
O interesse nacional brasileiro consiste em promover a estabilidade no entorno sul-americano. A Organização dos Estados Americanos (OEA), atravessada pela disparidade de poder entre os EUA e os demais Estados, não deveria ser um obstáculo à constituição de um órgão de segurança regional na América do Sul. Mas um órgão assim só pode existir com base no respeito à soberania dos Estados democráticos da região. Como pretender que a Colômbia se incorpore a um Conselho de Defesa incapaz de pronunciar uma condenação incondicional das Farc?
Politicamente, as Farc morreram quando, numa seqüência de ações terroristas, destruíram o processo de paz impulsionado pelo ex-presidente Andrés Pastrana entre 1998 e 2002. A eleição de Álvaro Uribe, sobre a plataforma de derrotar militarmente a guerrilha, representou uma decisão nacional. O governo Uribe prometeu desmantelar os grupos paramilitares de direita e está cumprindo o compromisso. Os golpes assestados pelo Exército eliminaram a capacidade de combate da guerrilha e a promessa de liberdade para os guerrilheiros que renunciarem às armas provoca fraturas generalizadas entre os insurgentes. As Farc só podem ser salvas pela interferência externa.
O presidente venezuelano, Hugo Chávez, crismou as Farc como um "movimento bolivariano" e se entregou a uma operação de socorro que se utiliza dos reféns para chantagear a Colômbia. A meta do caudilho é intercambiar a liberdade dos reféns pelo reconhecimento das Farc como parte beligerante. Nessa hipótese, o grupo conservaria suas armas e sua liberdade de ação enquanto os colombianos, contra a vontade que exprimiram em duas eleições sucessivas, seriam submetidos novamente a supostas negociações de paz. O entusiasmo chavista pelo Conselho de Defesa só pode ser compreendido à luz do que se passa na selva colombiana.
"O plano de Bolívar, quando regressou do Panamá, era formar uma aliança não só econômica e política, mas militar também, para nos defender e para assegurar nossa independência do imperialismo, do neoimperialismo e das guerras preventivas". Na visão de Chávez, o Conselho de Defesa é o embrião de uma aliança estratégica e de um exército regional destinados a prover segurança contra os EUA. Essa concepção se inspira nas teses do sociólogo alemão Heinz Dieterich, confidente do presidente da Venezuela até o fracassado referendo constitucional do ano passado, que imaginou a construção de um "bloco militar de poder latino-americano" sob a liderança do próprio Chávez.
Na forma sem conteúdo aventada pelo Brasil, o Conselho de Defesa não tem cérebro nem músculos - será, unicamente, um foro consultivo de debates, algo como uma antecâmara da OEA. Chávez aceita começar com tão pouco, pois sua prioridade tática é tecer uma articulação regional que isole a Colômbia, propiciando caminhos para evitar a iminente derrota das Farc.
A voz do venezuelano já se converteu numa ordem de comando para os partidos da esquerda stalinista latino-americana. Na declaração da reunião do Foro de São Paulo, encerrada no domingo em Montevidéu, está escrito: "Introduziu-se na região o conceito de guerra preventiva e aumentou-se a militarização em uma situação inédita comandada pelos EUA, que utiliza o governo da Colômbia como ponte". O documento, plenamente alinhado à operação de salvamento chavista, recomenda "aumentar os esforços para conseguir uma saída negociada para o conflito armado". No fim do encontro, o presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, expressou seu profundo pesar pela morte de Manuel Marulanda, o Tirofijo, chefão das Farc.
Desde Rio Branco a política externa brasileira adquiriu um perfil de política de Estado, elevando-se quase sempre acima do jogo político doméstico. No governo Lula, contudo, a pressão crescente dos ideólogos ameaça a paliçada que protege o interesse nacional. Em razão dos laços estreitos que ligam o PT ao castrismo e da emergência do chavismo, a ofensiva ideológica tem intensidade singular no domínio crucial da política para a América do Sul. O espectro da falência das Farc destruiu um equilíbrio precário no núcleo decisório da política externa brasileira.
Quando Chávez mediava a libertação dos reféns, o assessor presidencial Marco Aurélio Garcia declarou que o Brasil se mantém "neutro" diante do conflito colombiano. Logo depois, na hora do ataque à base do chefe guerrilheiro Raúl Reyes, Garcia tentou alinhar o Brasil à Venezuela e forçar uma condenação em bloco da Colômbia, mas foi afastado de cena pelo Planalto, que transferiu o comando diplomático para o Itamaraty. A tensão filtra-se no governo e no aparelho petista. O ministro do Exterior, Celso Amorim, rebelou-se contra a idéia de conferir às Farc um estatuto político, enquanto o senador Aloizio Mercadante ergueu a voz para sugerir uma condenação incondicional à guerrilha degenerada.
Agora os ideólogos voltam à carga. Diante das informações encontradas no computador de Reyes que atestam o apoio político e material da Venezuela às Farc, o Brasil conserva um silêncio oficial ignóbil. Simultaneamente, o PT eleva o tom da campanha de propaganda contra a Colômbia e o Conselho de Defesa vai sendo preenchido com os conteúdos que interessam a Caracas. Pagaremos caro pelo erro de brincar com os princípios permanentes de nossa política externa.
Demétrio Magnoli é graduado em Ciências Sociais e Doutor em Geografia Humana pela FFLCH-USP, editor da publicação Mundo - Geografia e Política Internacional, assina coluna semanal na Folha de S. Paulo e integra o GACINT - Grupo de Análises de Conjuntura Internacional da USP. Autor e co-autor de vários livros nas áreas de Geografia, Conjuntura Internacional, História Contemporânea, tais quais: " O Que é Geopolítica", "Da Guerra Fria à Detènte" e "O Mundo Contemporâneo", entre outros, além ministrar palestras e colaborar em diversos órgãos da mídia.
E-mail: demetrio.magnoli@terra.com.br
E-mail: demetrio.magnoli@terra.com.br
Publicado no jornal " O Estado de S. Paulo".
Quinta-feira, 29 de maio de 2008.
http://bootlead.blogspot.com
A hora e a vez dos ideólogos - Demétrio Magnoli
O germe do autoritarismo – Ricardo Noblat
1 comment:
Belo texto Boot. Se você tem um tempinho livre hoje, mande um e-mail a Câmara dos Deputados. Tem outro projeto de mordaça da internet.
Um abraço e obrigado pelo destaque do Blog!
Renam Diaz.
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