Como lidar com pato manco
por Mauro Chaves
O problema é que ele ainda não sabe que é pato e muito menos que é manco - se é que já ouviu falar dos lame ducks, apelido que os norte-americanos dão aos governantes em fim de poder. Ele não se sente esvaziado - e, se sentir, finge que não se sente. Não percebe ou finge que não percebe que suas ordens estão longe de ser prontamente atendidas, como antigamente. Até o cafezinho demora muito mais - e chega frio, faltando adoçante de envelope (vindo só o feio frasco de gotas). A displicência toma conta do seu gabinete - e dos seus Ministérios, e do seu governo. Mas ele ainda pensa que todos à sua volta continuam, como antes, concentrados 24 horas por dia para lhe agradar. É capaz de, meticulosamente, medir tudo, menos o grau de importância que ainda consegue preservar - mas que despenca a cada novo dia que o aproxima da planície.
É claro que um pato que tentou durante 20 anos entrar cinco vezes na lagoa - e o conseguiu em duas - se acostumou a desfrutar essas tentativas, até mais do que a própria lagoa. Mas não tendo encontrado quem possa suceder-lhe no comando da lagoa - e vendo-a só sobrevoada ostensivamente por outra espécie de ave, de bico grosso -, o pato manco se esforça por colocar em seu lugar alguém cuja rigidez de movimento de asas (à prova de qualquer treinamento com bambolê) mais se assemelha a uma estátua de ave do que a uma ave natural. De qualquer forma, foi o pato chefe que precipitou desastradamente a própria sucessão. Isso foi sua maior mancada - tanto que o tornou manco muito ante do tempo.
Quando o pato ainda era todo-poderoso e desfrutava popularidade recordista entre penosos e outros bichos de variada espécie, tinha todas as razões para se sentir acima de todos os bicos e asas. Fora favorecido, na lagoa, pelo elevado nível das águas que provinham de mananciais externos em excelente estado de vazão. Os patinhos que eram (ou se esforçavam para permanecer) mais raquíticos recebiam bolsas de milho sem precisar fazer nenhum esforço de catação. Muitos patos auxiliares faziam coisas feias nas bordas da lagoa - pegando porções que não lhes pertenciam e oferecendo milho extra e patuás de propinas para que alguns não os delatassem -, mas o pato chefe nunca sabia de nada, não tinha a menor idéia do que pudesse ocorrer de errado com seus subordinados, nem mesmo quanto ao milho não-contabilizado.
Por outro lado, sempre que algum pato companheiro procurava se destacar na lagoa, ou tentava disputar o poder com o chefe, tinha por este as asinhas cortadas, de uma forma ou de outra. Assim a lagoa ficou sob o domínio de um pato só, com a perspectiva de ser dominada não mais por pato algum - mas sim por um tucano que nunca parou de realizar seus vôos rasantes por sua superfície. E eis que, sem que bichos de espécie alguma esperassem, surgiu um tremendo tsunami (que o pato chefe, inicialmente, identificou como simples marolinha) que começou a arrasar muitos lagos vizinhos e se aproxima, perigosamente. Coincidiu a intempérie com o fato de o pato chefe estar na plena situação de pato manco. Os poderes totais de que este se sentia investido, o enorme sucesso pesqueiro que julgara ter obtido - e que "nunca antes havia ocorrido nesta lagoa" - passaram a escoar rapidamente por um bueiro que parecia invisível (mas de cuja existência, no fundo, todos desconfiavam).
Então, o que fazer? Como lidar com um pato manco que ainda acredita poder deslizar tranqüilo pela superfície da lagoa, no pouco tempo que ainda lhe resta para comandá-la, apesar do torvelinho que tem pela frente? A primeira coisa a fazer é procurar deixá-lo na ilusão de que ainda não é pato manco. Pois, se ele tiver consciência da própria patomanquice, é um perigo. Ninguém sabe como poderá reagir. Poderá sucumbir à tentação de fazer acordos até com alguns velhos urubus - o que seria péssimo para o processo de oxigenação da lagoa que se espera daqui a dois anos. Assim, não se pode deixar que saia da euforia habitual para entrar num processo de solidão que leve à depressão. É preciso que não perca a capacidade de festejo, nem a de comemorar até a vitória de campeão da segunda divisão - categoria, aliás, que marcou todo o seu governo da lagoa.
É preciso redobrar a paciência e aturar, com generosidade, a continuação das hipérboles, prosopopéias e antonomásias improvisadas, dos conselhos bombásticos a todos os dirigentes das lagoas do planeta, das tentativas de liderar as 20 maiores do mundo - em menoscabo das que são, efetivamente, as oito maiores. É preciso não se queixar quando ele repete e insiste nas excelências dos feitos de antecessores adversários como se tratasse dos próprios feitos, ou quando atribui a erros alheios o que, há pouco, comemorava como acertos seus.
É necessário reconhecer, sobretudo, as notáveis qualidades do que virou pato manco. Ele até conseguiu melhorar o volume de alimentos produzidos na lagoa, tamanho foi o sucesso em repetir e até aperfeiçoar o sistema de coleta alimentar feito por seu antecessor - embora nisso tenha empregado auxiliares demais que só nadavam e, mesmo assim, em águas não muito limpas. A enorme facilidade de comunicação foi outra qualidade que, durante a fase dos peixes gordos, só aumentou o prestígio do chefe. Foi ele quem demonstrou - "como nunca antes nesta lagoa" - a maior capacidade de aquisição de convencimentos: pois nunca antes se dissera tanto "eu estou convencido de que", nesta patuléia. Mas sua qualidade mais extraordinária foi a de ensinar a usufruir os maiores sabores da vida com a maior economia de esforços. Nisso ele foi, é e sempre será um autêntico mestre. E o resto é papo (de pato).
É claro que um pato que tentou durante 20 anos entrar cinco vezes na lagoa - e o conseguiu em duas - se acostumou a desfrutar essas tentativas, até mais do que a própria lagoa. Mas não tendo encontrado quem possa suceder-lhe no comando da lagoa - e vendo-a só sobrevoada ostensivamente por outra espécie de ave, de bico grosso -, o pato manco se esforça por colocar em seu lugar alguém cuja rigidez de movimento de asas (à prova de qualquer treinamento com bambolê) mais se assemelha a uma estátua de ave do que a uma ave natural. De qualquer forma, foi o pato chefe que precipitou desastradamente a própria sucessão. Isso foi sua maior mancada - tanto que o tornou manco muito ante do tempo.
Quando o pato ainda era todo-poderoso e desfrutava popularidade recordista entre penosos e outros bichos de variada espécie, tinha todas as razões para se sentir acima de todos os bicos e asas. Fora favorecido, na lagoa, pelo elevado nível das águas que provinham de mananciais externos em excelente estado de vazão. Os patinhos que eram (ou se esforçavam para permanecer) mais raquíticos recebiam bolsas de milho sem precisar fazer nenhum esforço de catação. Muitos patos auxiliares faziam coisas feias nas bordas da lagoa - pegando porções que não lhes pertenciam e oferecendo milho extra e patuás de propinas para que alguns não os delatassem -, mas o pato chefe nunca sabia de nada, não tinha a menor idéia do que pudesse ocorrer de errado com seus subordinados, nem mesmo quanto ao milho não-contabilizado.
Por outro lado, sempre que algum pato companheiro procurava se destacar na lagoa, ou tentava disputar o poder com o chefe, tinha por este as asinhas cortadas, de uma forma ou de outra. Assim a lagoa ficou sob o domínio de um pato só, com a perspectiva de ser dominada não mais por pato algum - mas sim por um tucano que nunca parou de realizar seus vôos rasantes por sua superfície. E eis que, sem que bichos de espécie alguma esperassem, surgiu um tremendo tsunami (que o pato chefe, inicialmente, identificou como simples marolinha) que começou a arrasar muitos lagos vizinhos e se aproxima, perigosamente. Coincidiu a intempérie com o fato de o pato chefe estar na plena situação de pato manco. Os poderes totais de que este se sentia investido, o enorme sucesso pesqueiro que julgara ter obtido - e que "nunca antes havia ocorrido nesta lagoa" - passaram a escoar rapidamente por um bueiro que parecia invisível (mas de cuja existência, no fundo, todos desconfiavam).
Então, o que fazer? Como lidar com um pato manco que ainda acredita poder deslizar tranqüilo pela superfície da lagoa, no pouco tempo que ainda lhe resta para comandá-la, apesar do torvelinho que tem pela frente? A primeira coisa a fazer é procurar deixá-lo na ilusão de que ainda não é pato manco. Pois, se ele tiver consciência da própria patomanquice, é um perigo. Ninguém sabe como poderá reagir. Poderá sucumbir à tentação de fazer acordos até com alguns velhos urubus - o que seria péssimo para o processo de oxigenação da lagoa que se espera daqui a dois anos. Assim, não se pode deixar que saia da euforia habitual para entrar num processo de solidão que leve à depressão. É preciso que não perca a capacidade de festejo, nem a de comemorar até a vitória de campeão da segunda divisão - categoria, aliás, que marcou todo o seu governo da lagoa.
É preciso redobrar a paciência e aturar, com generosidade, a continuação das hipérboles, prosopopéias e antonomásias improvisadas, dos conselhos bombásticos a todos os dirigentes das lagoas do planeta, das tentativas de liderar as 20 maiores do mundo - em menoscabo das que são, efetivamente, as oito maiores. É preciso não se queixar quando ele repete e insiste nas excelências dos feitos de antecessores adversários como se tratasse dos próprios feitos, ou quando atribui a erros alheios o que, há pouco, comemorava como acertos seus.
É necessário reconhecer, sobretudo, as notáveis qualidades do que virou pato manco. Ele até conseguiu melhorar o volume de alimentos produzidos na lagoa, tamanho foi o sucesso em repetir e até aperfeiçoar o sistema de coleta alimentar feito por seu antecessor - embora nisso tenha empregado auxiliares demais que só nadavam e, mesmo assim, em águas não muito limpas. A enorme facilidade de comunicação foi outra qualidade que, durante a fase dos peixes gordos, só aumentou o prestígio do chefe. Foi ele quem demonstrou - "como nunca antes nesta lagoa" - a maior capacidade de aquisição de convencimentos: pois nunca antes se dissera tanto "eu estou convencido de que", nesta patuléia. Mas sua qualidade mais extraordinária foi a de ensinar a usufruir os maiores sabores da vida com a maior economia de esforços. Nisso ele foi, é e sempre será um autêntico mestre. E o resto é papo (de pato).
Mauro Chaves é formado em Direito, Administração de Empresas, Filosofia, Cinema e Línguas, é jornalista, escritor, autor teatral, compositor e artista plástico. Mauro também é Editorialista e articulista do jornal "O Estado de S. Paulo", desde 1981 e comentarista político da Rede Gazeta de Televisão. Entre seus vários livros publicados, destacam-se "Três Contos Artificiais", "O Dólar Azul" e "Eu não disse?".
E-Mail: mauro.chaves@attglobal.net
E-Mail: mauro.chaves@attglobal.net
Publicado no jornal "O Estado de S. Paulo" (Opinião).
Sábado, 22 de novembro de 2008.
O monstro no fundo do abismo – J. R. Nyquist
The Monster at the Bottom of the Abyss – J. R. Nyquist
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