Foto: "Saturno devorando a un hijo" - Museo del Prado
Óleo sobre reboco (al secco) de Francisco de GOYA.
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BASTIAT E A LEI (II)
por José Nivaldo Cordeiro
Em artigo anterior (v. AQUI ) comentei o opúsculo de Bastiat e quero aqui continuar aquela reflexão. Entendo que temos duas ordens de problemas a discutir. Em primeiro lugar, a significância do que seja lei e do que seja Estado, do que seja o próprio poder. Em segundo, entender a lei dentro da perspectiva do direito natural, pois esta é a questão mais central não só do ponto de vista teórico, mas também a questão factual maiúscula a explicar o nosso tempo.
Por primeiro é preciso formular a pergunta: o que é o Estado? Desde a origem o Estado é violência organizada, coerção, e desde a origem procura praticar alguma forma de justiça. A lei é a espada, para expressar hiperbolicamente. É o Estado, em qualquer circunstância, o instrumento da justiça, mas ele mesmo não é a justiça. Desde tempos antigos filósofos e governantes perseguiram a fonte última de justiça e daí que provem a idéia do direito natural. Uma descoberta imorredoura dos filósofos gregos e dos profetas hebraicos é que a lei não é humana, sua fonte é transcendente, cabendo aos viventes a descoberta da sua melhor expressão positiva.
Seguindo a trilha da obra de Michel Villey podemos dizer que a tradição clássica entendia que a lei precedia a norma escrita. Esta só se solidificava na busca dialética entre os fatos e a tradição. O ponto perseguido é que a forma escrita da lei se aproximasse o máximo possível da fonte, segundo a natureza. Por isso que a norma positiva tem que ser necessariamente mutante, como os espécimes particulares são variáveis em comparação com a forma permanente. A lei, por definição, é algo que antecede qualquer expressão escrita. A tradição cristã reconhece que a lei está escrita na alma dos homens, um dom de Deus, podendo ser discernida pela razão. Toda a gente tem noção do certo e do errado, mesmo que pratique o erro de caso pensado.
O poder de Estado, a par do compromisso de proteção dos indivíduos da comunidade política contra o inimigo externo, tem também esse compromisso inescapável com a administração de alguma forma de justiça, ainda que essa venha a ser a vontade idiossincrática do soberano do dia. É essa função judicial que legitima. Defesa e justiça são as funções mais essenciais do Estado e a civilização só é possível ser construída quando essas funções estão desenvolvias.
O poder não é coisa inventada dos príncipes e dos escolhidos por algum critério para exercê-lo. Ele guarda relação com a opinião pública, expressa essa opinião. Pode-se governar pela tirania por certo tempo, mas não por todo tempo. Sem consentimento não há como um poder se manter. Por isso Ortega y Gasset, no famoso livro A Rebelião das Massas, lembrou-nos que governar é menos uma questão de punhos de que de nádegas, menos de fuzis do que de trono.
O problema acontece quando a fonte última do poder, as gentes, está moralmente adoecida, como nos tempos atuais. Como em todos os momentos revolucionários. A corrupção das gentes leva à escolha de governantes moralmente inferiores e intelectualmente despreparados para o desafio da arte de governar. O mister do governante não é técnico, bem que se diga, embora possua uma dimensão técnica que freqüentemente é executada pela tecnoburocracia. É, antes de tudo, um mister filosófico. Tem que ter o sentido da história. Tem que expressar o projeto existencial de toda a gente. Tem que buscar a justiça a mais pura possível.
Quando a corrupção da alma coletiva alcança limites inferiores o processo legislativo descola-se completamente da fonte de justiça. Como a lei é o instrumento pelo qual o Estado toma forma, é, por assim dizer, seu esqueleto, o processo legiferante contraditório agiganta-o e transforma-se no oposto, no instrumento de injustiça. A burocracia só faz aquilo que está expresso em lei. O poder será sempre o do fiscal, do policial da esquina, do vigia de trânsito, do juiz de primeira instância, do oficial de justiça. Quando as leis descolam-se da fonte passam a imperar normas demais, incoerentes entre si e contrárias ao senso de justiça. Dessa forma, o exercício do poder por parte dos agentes transforma a rotina da vida em tirania cotidiana, as prisões ficam abarrotadas e o simples existir passa a correr grande perigo. O Estado transforma-se no Saturno devorador de homens, para lembrar a forte imagem do quadro de Goya.
A doença coletiva atual é a mais profunda e é por causa dela que o Estado agigantou-se como nunca em toda a história da humanidade. A tributação, a regulação e a vigilância alcançaram graus nunca antes imaginados. As populações são agora cativas do poder de Estado e suas patrulhas – policiais, fiscais ou de qualquer natureza – tornaram-se como que expedição de caça. Nesse contexto, a função de justiça já foi sacrificada há muito.
Por isso que a lei positiva passou a ser idolatrada, numa espúria autonomização dos meios e das funções jurídicas, a começar pelo processo legislativo. Por causa da loucura coletiva, da segunda realidade (v. AQUI ) quixotesca. O sistema legal, a cambiar em velocidade alucinante, é a máxima expressão da doença da alma. O positivismo jurídico como filosofia imperante entre legisladores e juristas não é puro cinismo, embora o seja também: é sintoma dessa psicopatologia. Nunca devemos esquecer o que Voegelin escreveu sobre ele, que um Hitler também foi estritamente legalista. A lei insana pede um governante insano; a lei louca pede um governante louco.
Peguemos um exemplo simples, a questão do direito de propriedade. É intuitivo que a propriedade privada é algo sagrado, fundamento da ordem justa. A cada um o que é seu, reza o mais antigo preceito de justiça. Qual a sacrossanta crença dos tempos modernos? Que a socialização é o remédio para todos os males. O megasistema tributário foi construído na suposição de que se estaria praticando justiça social, quando na verdade o que se vê é o sistema de rapina mais escandaloso que já se construiu em todos os tempos. Quando se prende um ladrão qualquer, e uma pena lhe é imposta, eu me espanto, pois o que é um simples ladrão diante do Fisco? Toda a engenharia de distribuição de renda via Estado é o sintoma mais acabado da destruição dos valores da alma, é a paródia mais ridícula da caridade cristã e é o exercício cotidiano da mais profunda injustiça.
Essa monstruosidade foi construída pela combinação da retórica esquerdista mal intencionada, que vem desde a Revolução Francesa, com os apetites bestiais das massas, que perderam as barreiras e passaram a demandar benesses estatais além do que o Estado deveria estar autorizado a dar. Esse dois pólos agindo, tijolo por tijolo, dia a dia, lei a lei, norma a norma, deram nisso que vemos aí: esse horrendo mundo em que tudo está normatizado e só vive e prospera quem estiver como sócio do Grande Saturno. De fato, vivemos a Era do Roubo Institucional.
Minha intuição é que a crise que se instalou, na sua proporção e na sua agudeza, nasceu dessa desordem, da desconexão entre o processo legislativo, o Estado e o senso de justiça. Corrigir o descalabro deverá custar muito. No passado tivemos guerras colossais. Não me atrevo a fazer prognóstico algum.
Por primeiro é preciso formular a pergunta: o que é o Estado? Desde a origem o Estado é violência organizada, coerção, e desde a origem procura praticar alguma forma de justiça. A lei é a espada, para expressar hiperbolicamente. É o Estado, em qualquer circunstância, o instrumento da justiça, mas ele mesmo não é a justiça. Desde tempos antigos filósofos e governantes perseguiram a fonte última de justiça e daí que provem a idéia do direito natural. Uma descoberta imorredoura dos filósofos gregos e dos profetas hebraicos é que a lei não é humana, sua fonte é transcendente, cabendo aos viventes a descoberta da sua melhor expressão positiva.
Seguindo a trilha da obra de Michel Villey podemos dizer que a tradição clássica entendia que a lei precedia a norma escrita. Esta só se solidificava na busca dialética entre os fatos e a tradição. O ponto perseguido é que a forma escrita da lei se aproximasse o máximo possível da fonte, segundo a natureza. Por isso que a norma positiva tem que ser necessariamente mutante, como os espécimes particulares são variáveis em comparação com a forma permanente. A lei, por definição, é algo que antecede qualquer expressão escrita. A tradição cristã reconhece que a lei está escrita na alma dos homens, um dom de Deus, podendo ser discernida pela razão. Toda a gente tem noção do certo e do errado, mesmo que pratique o erro de caso pensado.
O poder de Estado, a par do compromisso de proteção dos indivíduos da comunidade política contra o inimigo externo, tem também esse compromisso inescapável com a administração de alguma forma de justiça, ainda que essa venha a ser a vontade idiossincrática do soberano do dia. É essa função judicial que legitima. Defesa e justiça são as funções mais essenciais do Estado e a civilização só é possível ser construída quando essas funções estão desenvolvias.
O poder não é coisa inventada dos príncipes e dos escolhidos por algum critério para exercê-lo. Ele guarda relação com a opinião pública, expressa essa opinião. Pode-se governar pela tirania por certo tempo, mas não por todo tempo. Sem consentimento não há como um poder se manter. Por isso Ortega y Gasset, no famoso livro A Rebelião das Massas, lembrou-nos que governar é menos uma questão de punhos de que de nádegas, menos de fuzis do que de trono.
O problema acontece quando a fonte última do poder, as gentes, está moralmente adoecida, como nos tempos atuais. Como em todos os momentos revolucionários. A corrupção das gentes leva à escolha de governantes moralmente inferiores e intelectualmente despreparados para o desafio da arte de governar. O mister do governante não é técnico, bem que se diga, embora possua uma dimensão técnica que freqüentemente é executada pela tecnoburocracia. É, antes de tudo, um mister filosófico. Tem que ter o sentido da história. Tem que expressar o projeto existencial de toda a gente. Tem que buscar a justiça a mais pura possível.
Quando a corrupção da alma coletiva alcança limites inferiores o processo legislativo descola-se completamente da fonte de justiça. Como a lei é o instrumento pelo qual o Estado toma forma, é, por assim dizer, seu esqueleto, o processo legiferante contraditório agiganta-o e transforma-se no oposto, no instrumento de injustiça. A burocracia só faz aquilo que está expresso em lei. O poder será sempre o do fiscal, do policial da esquina, do vigia de trânsito, do juiz de primeira instância, do oficial de justiça. Quando as leis descolam-se da fonte passam a imperar normas demais, incoerentes entre si e contrárias ao senso de justiça. Dessa forma, o exercício do poder por parte dos agentes transforma a rotina da vida em tirania cotidiana, as prisões ficam abarrotadas e o simples existir passa a correr grande perigo. O Estado transforma-se no Saturno devorador de homens, para lembrar a forte imagem do quadro de Goya.
A doença coletiva atual é a mais profunda e é por causa dela que o Estado agigantou-se como nunca em toda a história da humanidade. A tributação, a regulação e a vigilância alcançaram graus nunca antes imaginados. As populações são agora cativas do poder de Estado e suas patrulhas – policiais, fiscais ou de qualquer natureza – tornaram-se como que expedição de caça. Nesse contexto, a função de justiça já foi sacrificada há muito.
Por isso que a lei positiva passou a ser idolatrada, numa espúria autonomização dos meios e das funções jurídicas, a começar pelo processo legislativo. Por causa da loucura coletiva, da segunda realidade (v. AQUI ) quixotesca. O sistema legal, a cambiar em velocidade alucinante, é a máxima expressão da doença da alma. O positivismo jurídico como filosofia imperante entre legisladores e juristas não é puro cinismo, embora o seja também: é sintoma dessa psicopatologia. Nunca devemos esquecer o que Voegelin escreveu sobre ele, que um Hitler também foi estritamente legalista. A lei insana pede um governante insano; a lei louca pede um governante louco.
Peguemos um exemplo simples, a questão do direito de propriedade. É intuitivo que a propriedade privada é algo sagrado, fundamento da ordem justa. A cada um o que é seu, reza o mais antigo preceito de justiça. Qual a sacrossanta crença dos tempos modernos? Que a socialização é o remédio para todos os males. O megasistema tributário foi construído na suposição de que se estaria praticando justiça social, quando na verdade o que se vê é o sistema de rapina mais escandaloso que já se construiu em todos os tempos. Quando se prende um ladrão qualquer, e uma pena lhe é imposta, eu me espanto, pois o que é um simples ladrão diante do Fisco? Toda a engenharia de distribuição de renda via Estado é o sintoma mais acabado da destruição dos valores da alma, é a paródia mais ridícula da caridade cristã e é o exercício cotidiano da mais profunda injustiça.
Essa monstruosidade foi construída pela combinação da retórica esquerdista mal intencionada, que vem desde a Revolução Francesa, com os apetites bestiais das massas, que perderam as barreiras e passaram a demandar benesses estatais além do que o Estado deveria estar autorizado a dar. Esse dois pólos agindo, tijolo por tijolo, dia a dia, lei a lei, norma a norma, deram nisso que vemos aí: esse horrendo mundo em que tudo está normatizado e só vive e prospera quem estiver como sócio do Grande Saturno. De fato, vivemos a Era do Roubo Institucional.
Minha intuição é que a crise que se instalou, na sua proporção e na sua agudeza, nasceu dessa desordem, da desconexão entre o processo legislativo, o Estado e o senso de justiça. Corrigir o descalabro deverá custar muito. No passado tivemos guerras colossais. Não me atrevo a fazer prognóstico algum.
José Nivaldo Cordeiro: "Quem sou eu? Sou cristão, liberal e democrata. Abomino todas as formas de tiranias e de coletivismos. Acredito que a Verdade veio com a Revelação e que a vida é uma totalidade, não podendo ser cindida em departamentos estanques. Abomino qualquer intervenção do Estado na vida das pessoas e na economia, além do imprescindível para manter a ordem pública. Acredito que a liberdade é um bem que se conquista cotidianamente, pelo esforço individual, e que os seus inimigos estão sempre a postos para destruí-la. Preservá-la é manter-se vigilante e sempre disposto a lutar, a combater o bom combate. Acredito que riqueza e prosperidade só podem vir mediante o esforço individual de trabalhar. Fora disso, é sair do bom caminho, é mergulhar na escuridão da mentira e das falsas promessas".
José Nivaldo Cordeiro é economista e mestre em Administração de Empresas na FGV-SP e editor do site "NIVALDO CORDEIRO: um espectador engajado". E-mail: nivaldocordeiro@yahoo.com.br
Publicado no site "NIVALDO CORDEIRO: um espectador engajado".
Quinta-feira, 05 de fevereiro de 2009.
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