Não precisamos defender o Irã
por William Waack
Como em todos os outros assuntos internacionais cujo alcance e significado ele pouco compreende, o presidente Lula acha que disse o mais correto e acaba não percebendo onde se meteu. Foi assim recentemente com a crise financeira internacional e, nesta terça-feira (25), com o programa nuclear iraniano. Alguém do Itamaraty brifou Lula sobre a intrincada questão, mas foi pouco o que ele guardou na cabeça, a julgar pelo que disse a repórteres em Nova York.
“Se o (presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad) quer enriquecer urânio, tratar a questão nuclear como coisa pacífica, como o Brasil faz, é um direito do Irã”, disse Lula. E acrescentou: “Agora, todos nós, o Brasil, o Irã e qualquer outro país estamos subordinados às orientações das Nações Unidas”. Parece tudo tão óbvio e cristalino, não? Pois não é.
Brasil e Irã são signatários do Tratado de Não Proliferação (TNP), de 1967, que “congelou” o então estado de disseminação de bombas atômicas e suas tecnologias de uma maneira simples. Quem tinha, ficava com tudo (na época, China, União Soviética, Estados Unidos, Reino Unido e França). Quem não tinha, ganhava o direito de acesso a tecnologias nucleares para fins pacíficos, em troca da obrigação, imposta pelo TNP, de não fabricar armas nucleares. É o famoso artigo IV desse tratado. Por seu lado, as potências atômicas se comprometiam a se desarmar, o que nunca fizeram.
Como saber se algum signatário do TNP, que não tenha armas nucleares, está tentando burlar o tratado? Através de um instrumento chamado salvaguardas, ou seja, vigilância. A mesma agência da ONU que faz essa vigilância (aplica salvaguardas), a Agência Internacional de Energia Atômica, com sede em Viena, é também o organismo encarregado de promover a cooperação entre os países que são signatários do TNP. Cabe à AIEA denunciar ao Conselho de Segurança da ONU, por exemplo, se um signatário do TNP, como o Irã, está se comportando mal.
No caso do regime dos aiatolás, a AIEA até agora não condenou o país por burlar salvaguardas ou as cláusulas do TNP – em compensação, não deu a Teerã um atestado de boa conduta. Simplificando a questão, a AIEA está desconfiada, e reclama que seus inspetores não podem fazer no Irã tudo o que querem. Ela não vai ao ponto, como o fazem Estados Unidos e Israel, de dizer que os iranianos estão tentando desenvolver uma bomba atômica. Mas acaba de mandar aos responsáveis em Teerã longos questionários com perguntas ainda sem respostas, especialmente sobre recentes atividades no mercado negro de tecnologias e materiais nucleares.
A aplicação de salvaguardas já levou o Brasil mais de uma vez a contenciosos com as potências nucleares e a própria AIEA. Pouco depois da assinatura do famoso acordo nuclear entre o Brasil e a Alemanha (1975), por exemplo, os Estados Unidos insistiram e obtiveram dos alemães e seus parceiros europeus que ao programa brasileiro fossem aplicadas as chamadas “full scope safeguards”. E mais ainda: o Brasil foi o primeiro país do mundo a receber um tipo de vigilância baseada no critério da “contaminação”, ou seja, toda tecnologia que pudesse ser aplicada em outros setores levaria esses outros setores a serem supervisionados também.
Na época o Brasil não fazia parte do TNP. Resolveu aderir ao Tratado quando a Marinha de Guerra brasileira, num esforço paralelo, conseguiu desenvolver uma das tecnologias mais vigiadas e discutidas internacionalmente: a do enriquecimento de urânio, um dos pontos do ciclo de combustível nuclear a partir do qual se pode chegar à fabricação de material para bombas (o outro é o reprocessamento de combustíveis nucleares para se conseguir plutônio). E, para acabar com qualquer dúvida, o Brasil criou com a Argentina, que também tem um avançado programa nuclear, uma instância de controle comum que, por sua vez, chegou a um acordo de vigilância com a AIEA.
Quando Lula diz que se o Irã fizer como o Brasil faz, o presidente brasileiro quer acenar exatamente com o quê? Com a aplicação de salvaguardas hiper restritivas (que o Irã não aceita)? Que o Irã deveria abrir suas instalações para países vizinhos (como o Brasil faz para a Argentina, em regime de reciprocidade)? Que os inspetores da AIEA poderiam entrar e sair de lá quando quisessem (como acontece aqui)? Não, ele não fez isso. Só disse que o Irã não poder ser punido "antecipadamente". O raciocínio pode funcionar na política brasileira, mas não se aplica a questões nucleares internacionais.
Mais complicado ainda é quando Lula afirma que “estamos todos sob as orientações das Nações Unidas”. Provavelmente ele não se deu conta do fio desencapado no qual pisou. O Irã explorou com enorme astúcia uma brecha aberta entre a AIEA e o Conselho de Segurança. A AIEA mandou o tal questonário para Teerã e, enquanto isso, os iranianos podem (segundo a AIEA) continuar a enriquecer urânio – coisa que o Conselho de Segurança já mandou proibir duas vezes. Qual é a “orientação” da ONU que está valendo, então?
É muito grave do ponto de vista da experiente diplomacia nuclear brasileira, que tem décadas de prática, deixar a menor sombra de dúvida sobre qual lado o país está na crise internacional causada pelo programa nuclear iraniano. Nosso telhado não é de vidro. Para que deixar dúvidas sobre isso? Lula poderia ter aproveitado a ocasião dos microfones, que ele não desperdiça um só dia (quando lhe convém), para repetir um postulado muito antigo da diplomacia nuclear brasileira – e teria dado uma grande lição de moral aos fortões do planeta.
O Brasil se submete aos regimes de vigilância internacionais, mas espera que as potências nucleares cumpram também a sua parte, que é a de se desarmar. Formulada assim, nós é que temos a moral e a razão, o que não é pouca coisa em relações internacionais. Não precisamos defender o Irã. Precisamos defender o que nos interessa, e os nossos princípios.
William Waack nasceu em São Paulo, SP em 30/08/1952 é jornalista, formado pela USP. Cursou também Ciências Políticas, Sociologia e Comunicação na Universidade de Mainz, na Alemanha, e fez mestrado em Relações Internacionais. Tem quatro livros publicados e já venceu duas vezes o Prêmio Esso de Jornalismo, pela cobertura da Guerra do Golfo de 1991 e por ter revelado informações sobre a Intentona Comunista de 1935, até então mantidas sob sigilo nos arquivos da antiga KGB em Moscou. Waack trabalhou em algumas das principais redações do Brasil, como o Jornal do Brasil, O Estado de S. Paulo e a revista Veja. Foi editor de Economia, Internacional e Política. Durante 20 anos, William Waack foi correspondente internacional na Alemanha, no Reino Unido, na Rússia e no Oriente Médio. Desde 1996, trabalha para a TV Globo e voltou ao Brasil em 2000. Apresenta, desde maio de 2005, o Jornal da Globo e em 2006, passou a assinar uma coluna na editoria Mundo do portal de notícias G1.
Publicado no Portal G1.
Quarta-feira, 26 de setembro de 2007.
por William Waack
Como em todos os outros assuntos internacionais cujo alcance e significado ele pouco compreende, o presidente Lula acha que disse o mais correto e acaba não percebendo onde se meteu. Foi assim recentemente com a crise financeira internacional e, nesta terça-feira (25), com o programa nuclear iraniano. Alguém do Itamaraty brifou Lula sobre a intrincada questão, mas foi pouco o que ele guardou na cabeça, a julgar pelo que disse a repórteres em Nova York.
“Se o (presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad) quer enriquecer urânio, tratar a questão nuclear como coisa pacífica, como o Brasil faz, é um direito do Irã”, disse Lula. E acrescentou: “Agora, todos nós, o Brasil, o Irã e qualquer outro país estamos subordinados às orientações das Nações Unidas”. Parece tudo tão óbvio e cristalino, não? Pois não é.
Brasil e Irã são signatários do Tratado de Não Proliferação (TNP), de 1967, que “congelou” o então estado de disseminação de bombas atômicas e suas tecnologias de uma maneira simples. Quem tinha, ficava com tudo (na época, China, União Soviética, Estados Unidos, Reino Unido e França). Quem não tinha, ganhava o direito de acesso a tecnologias nucleares para fins pacíficos, em troca da obrigação, imposta pelo TNP, de não fabricar armas nucleares. É o famoso artigo IV desse tratado. Por seu lado, as potências atômicas se comprometiam a se desarmar, o que nunca fizeram.
Como saber se algum signatário do TNP, que não tenha armas nucleares, está tentando burlar o tratado? Através de um instrumento chamado salvaguardas, ou seja, vigilância. A mesma agência da ONU que faz essa vigilância (aplica salvaguardas), a Agência Internacional de Energia Atômica, com sede em Viena, é também o organismo encarregado de promover a cooperação entre os países que são signatários do TNP. Cabe à AIEA denunciar ao Conselho de Segurança da ONU, por exemplo, se um signatário do TNP, como o Irã, está se comportando mal.
No caso do regime dos aiatolás, a AIEA até agora não condenou o país por burlar salvaguardas ou as cláusulas do TNP – em compensação, não deu a Teerã um atestado de boa conduta. Simplificando a questão, a AIEA está desconfiada, e reclama que seus inspetores não podem fazer no Irã tudo o que querem. Ela não vai ao ponto, como o fazem Estados Unidos e Israel, de dizer que os iranianos estão tentando desenvolver uma bomba atômica. Mas acaba de mandar aos responsáveis em Teerã longos questionários com perguntas ainda sem respostas, especialmente sobre recentes atividades no mercado negro de tecnologias e materiais nucleares.
A aplicação de salvaguardas já levou o Brasil mais de uma vez a contenciosos com as potências nucleares e a própria AIEA. Pouco depois da assinatura do famoso acordo nuclear entre o Brasil e a Alemanha (1975), por exemplo, os Estados Unidos insistiram e obtiveram dos alemães e seus parceiros europeus que ao programa brasileiro fossem aplicadas as chamadas “full scope safeguards”. E mais ainda: o Brasil foi o primeiro país do mundo a receber um tipo de vigilância baseada no critério da “contaminação”, ou seja, toda tecnologia que pudesse ser aplicada em outros setores levaria esses outros setores a serem supervisionados também.
Na época o Brasil não fazia parte do TNP. Resolveu aderir ao Tratado quando a Marinha de Guerra brasileira, num esforço paralelo, conseguiu desenvolver uma das tecnologias mais vigiadas e discutidas internacionalmente: a do enriquecimento de urânio, um dos pontos do ciclo de combustível nuclear a partir do qual se pode chegar à fabricação de material para bombas (o outro é o reprocessamento de combustíveis nucleares para se conseguir plutônio). E, para acabar com qualquer dúvida, o Brasil criou com a Argentina, que também tem um avançado programa nuclear, uma instância de controle comum que, por sua vez, chegou a um acordo de vigilância com a AIEA.
Quando Lula diz que se o Irã fizer como o Brasil faz, o presidente brasileiro quer acenar exatamente com o quê? Com a aplicação de salvaguardas hiper restritivas (que o Irã não aceita)? Que o Irã deveria abrir suas instalações para países vizinhos (como o Brasil faz para a Argentina, em regime de reciprocidade)? Que os inspetores da AIEA poderiam entrar e sair de lá quando quisessem (como acontece aqui)? Não, ele não fez isso. Só disse que o Irã não poder ser punido "antecipadamente". O raciocínio pode funcionar na política brasileira, mas não se aplica a questões nucleares internacionais.
Mais complicado ainda é quando Lula afirma que “estamos todos sob as orientações das Nações Unidas”. Provavelmente ele não se deu conta do fio desencapado no qual pisou. O Irã explorou com enorme astúcia uma brecha aberta entre a AIEA e o Conselho de Segurança. A AIEA mandou o tal questonário para Teerã e, enquanto isso, os iranianos podem (segundo a AIEA) continuar a enriquecer urânio – coisa que o Conselho de Segurança já mandou proibir duas vezes. Qual é a “orientação” da ONU que está valendo, então?
É muito grave do ponto de vista da experiente diplomacia nuclear brasileira, que tem décadas de prática, deixar a menor sombra de dúvida sobre qual lado o país está na crise internacional causada pelo programa nuclear iraniano. Nosso telhado não é de vidro. Para que deixar dúvidas sobre isso? Lula poderia ter aproveitado a ocasião dos microfones, que ele não desperdiça um só dia (quando lhe convém), para repetir um postulado muito antigo da diplomacia nuclear brasileira – e teria dado uma grande lição de moral aos fortões do planeta.
O Brasil se submete aos regimes de vigilância internacionais, mas espera que as potências nucleares cumpram também a sua parte, que é a de se desarmar. Formulada assim, nós é que temos a moral e a razão, o que não é pouca coisa em relações internacionais. Não precisamos defender o Irã. Precisamos defender o que nos interessa, e os nossos princípios.
William Waack nasceu em São Paulo, SP em 30/08/1952 é jornalista, formado pela USP. Cursou também Ciências Políticas, Sociologia e Comunicação na Universidade de Mainz, na Alemanha, e fez mestrado em Relações Internacionais. Tem quatro livros publicados e já venceu duas vezes o Prêmio Esso de Jornalismo, pela cobertura da Guerra do Golfo de 1991 e por ter revelado informações sobre a Intentona Comunista de 1935, até então mantidas sob sigilo nos arquivos da antiga KGB em Moscou. Waack trabalhou em algumas das principais redações do Brasil, como o Jornal do Brasil, O Estado de S. Paulo e a revista Veja. Foi editor de Economia, Internacional e Política. Durante 20 anos, William Waack foi correspondente internacional na Alemanha, no Reino Unido, na Rússia e no Oriente Médio. Desde 1996, trabalha para a TV Globo e voltou ao Brasil em 2000. Apresenta, desde maio de 2005, o Jornal da Globo e em 2006, passou a assinar uma coluna na editoria Mundo do portal de notícias G1.
Publicado no Portal G1.
Quarta-feira, 26 de setembro de 2007.
http://bootlead.blogspot.com
Lula apoia a bomba atômica do Irã
4 comments:
É muito intrincado enfiar na cabeça de quem não vive "no meio", todos esses tratados e suas consequências. Seria desejável que um presidente da Republica (do Togo ou do Brasil), antes de abrir a boca se inteirasse a fundo do assunto. Desejarmos que, logo o Lulla fale algo coerente, sobre qualquer coisa é impossível.
As fotos são Davincianas e com a sua permissão vou "chupá-las" (no bom sentido, é claro) para um post.
SDS
Seu site foi incluído nos links do site www.averdadesufocada.com
Belo trabalho !
Mais uma vez, Lulla perdeu boa oportunidade de ficar calado. Fora dos discursos bem redigidos, o amontoado de baboseiras que vomita é esse mesmo, não tem como esperar algo melhor. Lamentável.
atenção !
Estamos no caos através dos serviços públicos essenciais onde há classe media e assalariado vem sendo oprimido pelos serviços prestados, pagamos um alto preço nos serviços se basearmos no salário mínimo do Brasil, agora só faltara há baderna a ser estalada, pois as atitudes péssimas se agrupam velozmente através de desonestos e incapazes governantes.
http://www.slide.com/r/98UZFRNS7D-QuSeIXxYAu0gUjShV_x9q?view=original
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